
O Dilema do Cupido
Sentada de frente a uma pequena mesa
em um aconchegante café, ela contemplava alguns casais enquanto bebia seu
expresso sem açúcar coberto com creme. Não era muito bonita, mas também não era
feia. Era uma garota comum de altura mediana e cabelos castanhos caindo pelas
costas. Mas ela não era como as outras garotas. Apesar de sua forma, ela não
era humana. Alice era um cupido. Longe dos cupidos das estórias com bebês
rechonchudinhos segurando um pequeno jogo de arco e flecha, ela, assim como
seus colegas de “profissão”, tinha a aparência humana e compartilhava algumas
de suas fraquezas.
O tilintar do sininho sobre a porta
chamou a atenção de Alice. Sua amiga, de infância e profissão, acabava de
entrar e se dirigiu até sua mesa depois de pedir um cappuccino à garçonete.
- Conseguiu terminar a missão,
Alice?
Alice apenas concordou com um aceno
de cabeça.
- Ai amiga. Quando você vai se
acostumar? É a nossa profissão.
- Não sei como você consegue Bianca.
- Você tem que parar de pensar em
você. Só assim vai conseguir terminar bem um trabalho.
A garçonete trouxe o cappuccino de
Bianca.
- Obrigada - ela agradeceu antes da
mulher ir embora. Bianca bebeu um pouco do cappuccino e continuou: - você
precisa parar de procurar um namorado. Sabe que somos poucos e temos muito
trabalho. A chance de você encontrar um cupido solteiro e afim de um
relacionamento é bem pequena.
Alice “deu de ombros”.
O que a deixava aborrecida nesse
trabalho era como ele acontecia. Não era difícil, mas para Alice estava sendo
cada vez mais doloroso. Isso porque um cupido precisa primeiro se apaixonar pelo
humano que irá “flechar” e depois apresentá-lo a alguém. Com a presença do
cupido é certo que o par acabe se apaixonando e o cupido termina de coração
partido “segurando vela” para mais um casal apaixonado. No entanto, se um
cupido tentar levar adiante um romance com um humano, fatalmente terá
problemas. Como o cupido ainda tem seus poderes, se ele apresentar uma pessoa
ao seu cônjuge humano, esse ficará instantaneamente apaixonado por esta pessoa.
O cupido só pode se entregar ao amor caso encontre outro cupido e se esse
também se apaixonar. Dessa forma ambos perdem os poderes de cupido e os
privilégios e passam a viver como humanos.
- Alice, nós temos uma vida
confortável garantida. Temos bons apartamentos para morar, roupas de qualidade,
tudo o que quisermos comer e dinheiro para gastar nas nossas missões. Tudo bem
que a gente bem que merecia um pouco mais...
Alice sorriu.
- Que cupido vai querer abandonar
isso? - Bianca continuou - nem mesmo você vai querer ficar sem seu chá de Morangos
do Algarve.
Alice sorriu - talvez você esteja
certa. Eu só queria ser assim como você e me recuperar da paixão tão rápido.
- Com o tempo você vai conseguir.
Você vai ver - Bianca incentivou. - Bem, agora tenho que ir. Você já terminou a
sua missão, mas eu ainda vou acompanhar o novo casal que eu formei em uma
festinha - ela terminou o cappuccino.
- Também já vou - Alice terminou o
café e as duas seguiram em direção onde ficavam os apartamentos das duas. Elas
se despediram ao sair do elevador.
Alice entrou em casa. O apartamento
era grande e confortável. Ela morava nele desde que começara a realizar seus trabalhos
aos 20 anos. Durante a adolescência, Alice, assim como qualquer outro cupido,
sabia que era diferente das outras pessoas, mas só quando recebeu a visita de
alguém que a explicou o que ela realmente era, tudo começou a fazer sentido. Todas
as paixões em sua adolescência haviam sido platônicas e cada vez que mais um
casal se formava em seu ciclo de amigos, ela se sentia deixada de lado. Hoje
ela já estava mais conformada com a situação, apesar de tudo, ficava feliz por
ter o poder de fazer as pessoas se apaixonarem umas pelas outras.
Ela colocou a bolsa que carregava na
bancada da cozinha e sorriu ao ver a caixa com os sachês de chá de Morangos de
Algarve. Ela havia feito a encomenda pela manhã ligando para o escritório
central dos cupidos, e o pedido havia sido deixado em seu apartamento como de
costume. Alice preparou o chá e se sentou no sofá, de tecido negro e
preenchimento de silicone, que Bianca a havia feito escolher de um catálogo
quando montava o apartamento, acompanhada de Aslan, seu gato siamês para
assistir seu seriado favorito na televisão.
Bianca entrou em casa. Seu
apartamento tinha o mesmo padrão sofisticado do de Alice e ficava a apenas duas
portas de distância. As duas eram as únicas cupido do prédio, talvez do bairro.
Ela seguiu direto para o banheiro e preparou a hidromassagem para um banho de
espuma. Ela também tinha um gato, mas Wuffy, um persa branco, dormia
preguiçosamente sobre sua cama. Bianca colocou um CD de música clássica para
tocar e entrou na banheira. Ela ainda pensava na rápida conversa que tivera com
Alice. Apesar de ver o sofrimento da amiga, tudo o que ela mais queria era
manter-se apaixonada.
Embora tivessem o mesmo tempo de
profissão, depois de passar por tantas desilusões amorosas, o que significava
que facilmente os cupidos chegavam aos vinte anos sem nunca terem namorado ou
sequer beijado ninguém, o que era consequência natural de ser o que eram, a
maioria perdia a capacidade de se manterem apaixonados por muito tempo. Esse
era o dilema do cupido. Faziam as pessoas se apaixonar, mas não conseguiam
sentir-se atraídos por alguém por tempo suficiente para tentar conquistar a
pessoa por quem haviam se apaixonado. Eles simplesmente perdiam o interesse.
Apesar de tudo, os cupidos
geralmente não abandonavam a profissão. Recebiam toda espécie de apoio de uma
central que eles apenas imaginavam onde poderia ficar. E eles sabiam de sua
importância. Sem os cupidos o mundo estaria com os dias contados. Sem a paixão
para inspirar as pessoas, o amor encontraria dificuldades para se manifestar. E
sem o amor, o mundo pereceria em guerras.
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Postado originalmente no blog: Universo Invisível,
por Helaina Carvalho.